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Cada Orixá Tem Seu Território E Cada Um Tem a Sua Passagem

O xamanismo ameríndio opera em termos de uma política cósmica: os pajés são os “que administram as relações dos humanos com o componente espiritual dos extra-humanos, capazes como são de assumir o ponto de vista desses seres e, principalmente, de voltar para contar a história” (Viveiros de Castro, 1996, p. 120). Entre os “mundos de axé” e os “perspectivistas” se traça não “apenas aquilo que a atividade ritual ou xamânica pressupõe, as ‘participações’, mas também seu efeito para a afirmação de uma posição ativa do sujeito frente a outros (possíveis) sujeitos” (Vanzolini, 2014, p. 280).

Os processos de cura e de auxílio às pessoas ocorrem na religião e
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estão ligados com o xamanismo indígena, à pajelança e também às relações com a natureza que os diferentes coletivos não ocidentais operam.

Seguindo Anjos (2006), esses elementos abrem possibilidades de outras formas de lidar com o sincretismo. As práticas afro-brasileiras vão além do, e contra o, conceito de “democracia racial”, “sem cair no luso-tropicalismo e nos mitos nacionalistas da mestiçagem cultural” porque mostram que estamos diante de acontecimentos, devires e passagens, que são operados na lógica de “disjunção inclusa” (Deleuze, 2011), que é quando “cada ser implica de direito todos os seres”, em um “processo que consiste em um percurso de intensidades” (Zourabichvili, 2004, p. 105-106).

Opera-se uma relação cosmopolítica quando os afrorreligiosos evocam a importância dos caboclos indígenas e pajés, que realizam curas e estabelecem relações com os espíritos auxiliares: os animais e as plantas. Essas relações são feitas e se dão em territórios nos quais a mediação não só será possível como é intensivamente necessária, como na atuação com as práticas de cura e as receitas de banhos de ervas. A interpenetração do cosmos e dos corpos permite aprender a operação de relações: o intermediário para o orixá que trabalha na pedreira será algum caboclo da linha de Xangô na Umbanda. Essa relação é explicada por Cristian:

"Se a filha [carnal] da Mãe Irma for à beira da praia fazer um serviço, não vai ser a Jurema dela, das Matas, quem vai chegar [incorporar] nela; quem vai chegar é a Jurema da Beira da Praia. Se ela estiver uma pedreira, quem vai chegar é a Jurema da Pedreira, de Himalaia, que é a Jurema que eu trabalho, e não a Jurema das Matas. Isso depende do território! Cada Orixá tem o seu território e cada um tem a sua passagem! Pelo lado de Umbanda, existem sete Orixás: Bará, Ogum, Iansã, Xangô, Oxum, Iemanjá e Oxalá. Quando eu falo Bará, ele não fica restrito só a um Bará, entendesse? Este Bará, que eu falo, para o lado da Umbanda, puxa o Xapanã para a linha dele. E, tem um monte de caboclos que são Oguns. São vinte e sete Oguns e, destes, saem os caboclos. Cada orixá tem seus caboclos, vários, mulheres e homens" (Entrevista com Cristian, Rio Grande, agosto de 2012).

Cristian salienta a relação entre os orixás, caboclos e os territórios os quais os trabalhos são realizados: se o serviço ocorrer em uma pedreira, a pessoa vai receber uma cabocla Jurema que vem na linha de Xangô; se for à beira da praia, uma Jurema da Beira da Praia, cabocla da linha de Iemanjá.

Assim, é nas intensidades, nas passagens e nas forças energéticas que os territórios e os corpos operam porque os orixás estão no local da evocação da intermediação: o orixá da pedreira é o Xangô; da praia de água salgada, é Iemanjá; da mata, é Ogum. Os diferentes caboclos e caboclas vão operar os trabalhos e a intermediação entre humanos e extra-humanos. Do mesmo modo, na terreira, cada ponto chama uma linha específica de cada orixá e dos caboclos a ele associados. No ponto de Ogum, por exemplo, vão chegar (incorporar) nas pessoas, caboclos da linha de Ogum.

Quando a pessoa já está bastante lapidada, ou seja, já passou por determinadas fases de aprontamento e participação na religião, ela incorpora um caboclo e fica com esse até o final da Linha Branca ou pode dar passagem para outro caboclo de outras linhas que os pontos vão chamando. Já as pessoas que ainda estão se desenvolvendo na religião recebem uma entidade no momento ritual e desincorporam antes de darem o passe nas pessoas e ficam, enquanto cambonos, no auxílio das pessoas que vão ter com as entidades que estão na terra.

Sem os intermediários – os diversos espíritos e as diferentes energias –, a religião não realiza a sua potência. A Linha Cruzada conecta as diferenças não para formar uma unidade, mas para manter as diferenças intensivas, enquanto tais: nada se faz sozinho e nada opera pelo uno, há as ligações e há os distanciamentos possíveis. O cruzamento possibilita que em uma pedreira dos índios possa ser feito trabalho para Xangô.

Certa vez, quando conversávamos, Mãe Irma e o seu ex-companheiro me falaram da existência de um local, no interior do município de Mostardas, no qual havia gravuras indígenas em pedras (grafismos rupestres, em um sítio chamado Taroca, localizado no Rincão, à beira da Lagoa dos Patos). Na perspectiva da Umbanda, esse local é intensamente forte nas relações que a religião opera. Quando se evoca aquela pedreira como um lugar importante para as práticas religiosas, realiza-se um encadeamento cósmico, uma conexão coexistente de diferenças, atualizando intensidades possíveis de serem compostas em suas relações.

O Xangô trabalha na pedreira e tem como aliados os caboclos, que possuem práticas indígenas milenares. Na pedreira do Rincão, segundo as pessoas da terreira, havia os pajés, os preservadores da religião, os feiticeiros, como foi dito na conversa que tivemos. Essas forças podem ser acionadas na terreira e em outros momentos – como em um atendimento, quando o caboclo ou a cabocla possuem a força de curar, mesma força que tem um pajé, porque ele tem o conhecimento das ervas, da medicina.

Conhecer a força dos índios é a parte da aprendizagem que a pessoa opera na religiosidade afro-brasileira: ela não pode e não deve conhecer sem ter a vivência na e da religião, a percepção da natureza e de tudo aquilo que envolve seu corpo, seu espírito e suas relações com os orixás, com substâncias, com outras entidades, com animais, com plantas, com o Cosmos. É pela vivência, pelo entrosamento ritual e cotidiano entre humanos e extra-humanos, que a pessoa vai conhecer mais e saber como fazer a religião.

Tais circunstâncias são constantemente evocadas no conceito de lapidação, no desenvolvimento do espírito e do corpo batuqueiro (Anjos, 1995).

A pessoa, nas religiões afro-brasileiras, passará por apreensão de substâncias, que construirão e constituirão seu corpo, por relações entre ela e outros entes, podendo chegar ao grau de Mãe ou Pai de Santo, iniciando outras pessoas na religião, abrindo sua própria terreira, realizando atendimentos, jogando os búzios, fazendo benzimentos etc.

Os caboclos indígenas são intermediários de orixás africanos, são Mensageiros. Essas duas referências diferentes, a africana e a ameríndia, são conectadas, sem formar unidade e nem "idealização” essencialista do que é ameríndio ou do que é africano. Cada intensidade é diferente e produz diferenças. O Sete Encruzilhadas cruza-se: ele é caboclo da Umbanda, mas poderá chegar ao Batuque, porque, segundo Mãe Jalba, ele já é quase orixá e, ainda, já chega como exu, na Linha de Exu, na virada que ele faz. Aqui, outro elemento de diferenciação ocorre: a possibilidade de um caboclo indígena assumir uma posição no panteão de orixás africanos, sem dividir essas potências de forma estanque. Pois, na virada que ele faz, ele se nomadiza entre diferentes linhas de atuação: Umbanda, Quimbanda, Batuque...

Há, portanto, um intensivo encadeamento de conhecimentos ameríndios e africanos a partir da intermediação e das práticas que se operam na Umbanda. No que envolve a cura, umbandistas afirmam que a religião é uma medicina. Em diversos textos umbandistas e no que as mães de santo e outras pessoas evocam, encontramos a ideia de que a Umbanda é mais que religião, é ciência. A própria palavra “Umbanda” – que, segundo vários estudos, é oriunda do kimbundu, uma das diversas línguas africanas – quer dizer “arte de cura”. Isso a aproxima, de certa forma, da práxis cosmo-ontológica dos pajés, no sentido literal, o que também se conecta ao que afirma Vanzolini (2014, p. 276): o “axé orienta as religiões de matriz africana para o desenvolvimento de mecanismos de controle das conexões entre os diversos elementos e partes do cosmo, em um regime comparável àquele em que, entre povos indígenas da América do Sul, se dão as transformações xamânicas”.

Estamos diante de coletivos sociocósmicos, nos quais os processos de cura só podem estar ligados a outros elementos, como as entidades, os animais, as plantas etc., em uma interação constante. Conforme Sztutman (2009, p. 4) enfatiza, os povos ameríndios “estariam acostumados a conceber o que chamamos de natureza como um domínio fortemente dependente da ação humana, em interação constante com o domínio humano”.

Para afrorreligiosos (as), a “natureza” é também permeada por diversos entes partícipes dela, sendo permeada pelas relações humanas e extra-humanas, em interação constante e diferenciante. O peso que essa dimensão possui se dá em termos de cruzamentos possíveis, entre diversos modos de existência e nas práticas de cura e saúde. Não se trata apenas de um “cuidado” com a natureza, mas sim de uma relação intensiva entre Cosmos, pessoas e outros entes, operada em um plano de coexistência em que a natureza (a mata) é conectada a outras dimensões. O acontecimento de cruzar corpos, entidades e locais, curar pessoas e realizar sacrifícios aos orixás e a outras entidades, opera práticas de coexistência possíveis.

João Daniel Dorneles Ramos

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