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O Enigmático Dom Juan

Dom Juan Matus, pseudônimo do indígena yaqui mexicano que guiou Carlos César Salvador Arana Castañeda, mais conhecido simplesmente como Carlos Castaneda, que foi um escritor e antropólogo formado pela Universidade da Califórnia, teve seus pais assassinados por soldados mexicanos, viveu em vários lugares e era adepto da linhagem conhecida como nagualismo ou toltequismo, tradição xamânica de centenas de anos do México e América Central. Outros povos além do tolteca praticavam essa modalidade de xamanismo, ou seja, não se pode confundir o povo tolteca com a tradição xamânica tolteca.

Dom Juan explica à Carlos as duas totalidades que constituem o ser
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humano, chamadas por ele de tonal e nagual (lê-se ‘naual’). Carlos conhecia vagamente esses termos pela literatura sobre cultura do México central. Mas, para Dom Juan esses conceitos tinham uma descrição mais abrangente, suprimindo de vez, todas as intepretações que não fossem aquelas das quais ele mesmo testemunhara. Tonal e nagual são duas entidades separadas, mas complementares, remetendo seu funcionamento a partir do nascimento. O tonal é nossa pessoa social, o que organiza o mundo e tudo aquilo que somos, sabemos ou fazemos como seres humanos. “O tonal começa com o nascimento e termina com a morte”. Para o tonal, qualquer tipo de entendimento bastaria, mas no caso do nagual, a única possibilidade de visualizá-lo é através do corpo. Para Dom Juan, “o nagual explica a criatividade, é a única parte de nós que consegue criar”. O tonal precisa ser muito bem resolvido, “limpado” a fim de torná-lo impecável. Logo, precisa ser reduzido, com a finalidade de ceder espaço para que o nagual se manifeste. “O nagual é a parte de nós para a qual não existe descrição... nem palavras, nem nomes, nem sensações, nem conhecimento”.

Dom Juan atua como o sucessor de uma linha de naguais : ele está à frente de um clã formado por 16 magos (ele mesmo incluído), agrupados nas casas ao sul, leste, oeste e norte:
• no sul: Cécilia, Delia, Emilito, Teresa
• no leste: Vicente Medrano, Carmela, Hermelinda, Juan Tuma
• ao oeste: Zuleïca, Zoïla, Silvio Manuel, Marta
• no norte: Nelida, Florinda, Genaro Flores , Juan Matus

O ensino do Nagual (com N maiúsculo: o chefe do clã bruxo, dominando as diferentes artes do Sonhar, perseguição e guerreiro impecável) é dirigido à consciência do lado esquerdo, (chamado de nagual - n minúsculo), ambos "território ", ou realidade diferente da realidade comum, e um estado de percepção e compreensão maior do que o mundo" normal ", também chamado de Tonal (localizado no lado direito). O aprendiz é colocado em um estado de atenção redobrada pelo golpe do Nagual: se Dom Juan atinge Castaneda na escápula, é para desalojar o ponto de aglutinação de sua localização normal e trazê-lo a este estado de consciência, a segunda atenção. Castaneda às vezes recorrerá, no início de seu aprendizado, à ingestão de plantas psicotrópicas para relaxar seu estado de consciência, mas isso será apenas um passo e nunca um fim em si mesmo. Inicialmente, o ensino recebido pelo aprendiz é inacessível à primeira atenção, ou seja, em uma situação de consciência "normal". Só se revelará em sua totalidade na "segunda atenção", quando o aprendiz se tornar um mestre na arte de mover seu ponto de aglutinação. É praticando a arte de sonhar que Castaneda conseguirá desenterrar todos os elementos de seu aprendizado com Dom Juan. Capazes de mobilizar a segunda atenção de forma consciente, os feiticeiros podem cruzar as fronteiras para outro mundo, onde entrarão na "terceira atenção", que é alcançada quando o brilho da consciência se transforma no fogo interior, um brilho que não acende uma banda de cada vez, mas todas as emanações dentro do casulo do homem.

Alguns leitores suspeitam que Dom Juan sequer existiu, e ele foi um personagem ficcional criado por Castañeda baseado no contato com alguns xamãs e em seus estudos sobre o tema. Até a esposa de Carlos, Margaret Runyan Castañeda, mesmo admirando os livros do marido, afirma que nunca conheceu Dom Juan e dizia que o vinho preferido de Carlos, um português chamado Mateus, pode ter inspirado o nome do bruxo indígena.

Castañeda conta que seu primeiro encontro com o indígena da tribo Yaqui Juan Matus ocorreu em uma estação rodoviária por indicação de um amigo que sabia da procura do então estudante de antropologia Carlos Castañeda por informações sobre antigos rituais xamânicos para uma tese de doutorado na Universidade da Califórnia (UCLA). Daí para frente, muitos livros foram escritos por ele sobre seu mergulho nos mistérios da sabedoria ancestral indígena. Estima-se que Castañeda tenha alcançado a impressionante marca de 8 milhões de livros vendidos em 17 línguas. Em 1973, seus livros chegaram a vender 16 mil cópias por semana.

Carlos Castañeda concedeu raras entrevistas, uma delas ao estudante bolsista da UCLA, Luiz André Kossobudzki, em 1975 e publicada na revista Veja. Para Kossobudzki, o escritor explicou assim sua caminhada na trilha dos ensinamentos de Dom Juan: “o guerreiro-pirata age por si mesmo, e assume a responsabilidade por suas ações. No processo de me tornar guerreiro-pirata eu encontrei poder pessoal, isto é, o poder da coragem e disciplina. Don Juan me ensinou a enxergar, ver o mundo ao invés de simplesmente olhar”.

Muitos dos ensinamentos passados por Dom Juan têm origem na cultura indígena de três mil anos atrás. Cinco séculos de perseguições aos cultos dos povos chamados pré-colombianos pelos colonizadores europeus em sua maioria católicos transformaram os ritos toltecas em subcultura desprezada pela elite local.

Os xamãs eram conhecidos como guias espirituais livres de ambição e medo e conhecedores dos caminhos espirituais pelos povos originários das Américas. Eles também possuíam a capacidade de identificar as energias boas e ruins. Dentro dessa cultura ancestral é como se Carlos tivesse sido escolhido pelo nagual Dom Juan como seu aprendiz. Após o treinamento que envolveu o uso de plantas de poder como o peiote e as demais práticas dessa tradição, Carlos transforma-se em legítimo herdeiro da tradição nagual.

Apelo aqui para a racionalidade na tentativa do entendimento dos ensinamentos de Dom Juan e acredito que a iluminação espiritual implica no abandono do sensorial para o uso de uma percepção mais ampla de mundo, em que pouca coisa importa além do simples e de valores universais como bondade e solidariedade. O guerreiro, segundo Castañeda, desvenda parte dos segredos da infinitude do universo e assim também da morte.

Castañeda escreve com frequência em seus livros sobre o abandono das certezas do mundo físico na busca do conhecimento. Para isso, o escritor abusa de pensatas metafísicas, principalmente sobre a importância e o valor que damos ao mundo real. No aprendizado com Dom Juan, o intelectual Carlos se digladia em intensos dilemas em busca de respostas para questionamentos existenciais.

Não se chega facilmente às respostas sem vigoroso treinamento em que Carlos se vê perdido em situações-limite. Como em outras tradições espirituais, Carlos deve se desapegar do materialismo ocidental para que seu aparelho cognitivo esteja preparado para epifanias.

Para isso, o mundo real tem que ser afastado temporariamente, e aí entra o uso das drogas alucinógenas para a imersão em um tempo mágico, longe dos consensos sociais e políticos. Na entrada deste mundo paralelo, existe o guarda, uma espécie de sentinela do outro mundo. O guarda é mutável, para Carlos foi uma besta fera de 30 metros. Segundo Dom Juan, o guarda é uma projeção de vontade, por isso devemos abandonar a vontade como um sentimento mundano, inútil no lado de lá.

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