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Resgate da Alma, Segundo Jung

Transformações da personalidade não são ocorrências raras. Na realidade, elas desempenham um papel considerável na psicopatologia, embora sejam diversas das vivências místicas às quais a investigação psicológica não tem acesso fácil. No entanto, os fenômenos que a seguir examinaremos pertencem a uma esfera bastante familiar à psicologia, é o que chamamos de “Diminuição da personalidade”. Um exemplo da alteração da personalidade no sentido da diminuição é nos dado por aquilo que a psicologia primitiva conhece como lost of soul (perda de alma).

A condição peculiar implícita neste termo corresponde na mente do primitivo à suposição de que a alma se foi, tal como um cachorro
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que foge à noite de seu dono. A tarefa do xamã é então capturar a fugitiva e trazê-la de volta. Muitas vezes a perda ocorre subitamente e se manifesta através de um mal estar geral. O fenômeno se conecta estreitamente com a natureza da consciência primitiva, desprovida da firme coerência da nossa própria consciência.

Possuímos controle sobre o nosso poder voluntário, mas o primitivo não o tem. São necessários exercícios complicados para que ele possa concentrar-se em qualquer atividade consciente e intencional que não seja apenas emocional e instintiva. Nossa consciência é mais segura e confiável neste aspecto. No entanto, algo semelhante pode ocorrer ocasionalmente com o homem civilizado, só que não o descrevemos como uma lost of soul, mas como um “abaissement du niveau mental”, termo que JANET (psicólogo, psiquiatra e neurologista francês) designou para este fenômeno.

Trata-se de um relaxamento da tensão da consciência, que pode ser comparada com uma baixa leitura barométrica, pressagiando mau tempo. O tônus cedeu, o que é sentido subjetivamente como peso, morosidade e depressão. Não se tem mais nenhum desejo ou coragem de enfrentar as tarefas do dia. A pessoa se sente como chumbo porque nenhuma parte do corpo parece disposta a mover-se, e isso é devido ao fato de não haver mais qualquer energia disponível. Este fenômeno bem conhecido corresponde à lost of soul do primitivo.

O estado de desânimo e paralisação da vontade pode aumentar a ponto de a personalidade desmoronar, por assim dizer, desaparecendo a unidade da consciência; as partes isoladas da personalidade tornam-se autônomas e através disso perde-se o controle da consciência. Criam-se assim, por exemplo, campos anestesiados ou amnésia sistemática. Esta última é um "fenômeno histérico de perda". Esta expressão médica corresponde à lost of soul.

O abaissement pode ser consequência de um cansaço físico e psíquico, de doenças somáticas, de emoções e choques violentos, cujo efeito é especialmente deletério sobre a auto-segurança da personalidade. O abaissement sempre tem uma influência limitadora sobre a personalidade global. Diminui a autoconfiança e a iniciativa e limita o horizonte espiritual através de um egocentrismo crescente. Pode levar finalmente ao desenvolvimento de uma personalidade essencialmente negativa, que representa uma falsificação em relação à personalidade originária.

A intensidade de consciência reduzida e a ausência de concentração e atenção, ou seja, o abaissement du niveau mental (PIERRE JANET), corresponde quase exatamente ao estado primitivo de consciência, no qual devemos supor a origem da formação dos mitos. Por essa razão, é extremamente provável que os arquétipos mitológicos também tenham surgido de maneira semelhante à das manifestações de estruturas arquetípicas individuais que ocorrem ainda atualmente.

O princípio metodológico segundo o qual a psicologia trata dos produtos do inconsciente é o seguinte: conteúdos de natureza arquetípica são manifestações de processos no inconsciente coletivo. Não se referem, portanto, a algo consciente agora ou no passado, mas a algo essencialmente inconsciente. Em última análise portanto é impossível indicar aquilo a que se refere. Toda interpretação estaciona necessariamente no "como se". O núcleo de significado último pode ser circunscrito, mas não descrito. Mesmo assim, a simples circunscrição já denota um progresso essencial no conhecimento da estrutura pré-consciente da psique, que já existia quando ainda não havia qualquer unidade pessoal (que no primitivo atual ainda não é uma posse assegurada), nem qualquer vestígio de consciência. Podemos observar tal estado pré-consciente na primeira infância e são justamente os sonhos dessa época que frequentemente trazem à luz conteúdos arquetípicos extremamente importantes.

Quando se procede segundo o princípio acima, não se trata mais de indagar se um mito se refere ao Sol ou à Lua, ao pai ou à mãe, à sexualidade, ao fogo ou à água, mas trata-se unicamente da circunscrição e da caracterização aproximada de um núcleo de significado inconsciente. O sentido deste núcleo nunca foi consciente e nunca o será. Sempre foi e será apenas interpretado, pois toda a interpretação que se aproxima de algum modo do sentido oculto (ou - do ponto de vista do intelecto científico - sem sentido, o que é o mesmo) sempre reivindicou não só a verdade e validade absolutas, mas também reverência e devoção religiosa.

Os arquétipos sempre foram e são forças da vida anímica, que querem ser levados a sério e cuidam de valorizar-se da forma mais estranha. Sempre foram portadores de proteção e salvação, e sua violação tem como consequência os perils of the soul, tão conhecidos na psicologia dos primitivos. Além disso, também são causas infalíveis de perturbações neuróticas ou até psicóticas, ao se comportarem exatamente da mesma forma que órgãos corporais ou sistemas de funções orgânicas negligenciadas ou maltratadas.

Um conteúdo arquetípico sempre se expressa em primeiro lugar metaforicamente. Se falar do Sol e com ele identificar o leão, o rei, o tesouro de ouro guardado pelo dragão, ou a "força vital de saúde" do homem, não se trata nem de um, nem de outro, mas de um terceiro desconhecido, que se expressa mais ou menos adequadamente através dessas metáforas, mas que - para o intelecto é um perpétuo vexame - permanecendo desconhecido e não passível de uma formulação. Por essa razão, o intelecto científico sempre sucumbe de novo a tendências iluministas, na esperança de banir definitivamente o fantasma do inexplicável. Não importa se esses esforços são chamados de evemerismo, apologética cristã, iluminismo no sentido estrito da palavra, ou de positivismo, sempre haverá oculto, por trás, um mito em roupagem nova e desconcertante que, segundo um modelo arcaico e venerável, lhe dava um cunho de conhecimento definitivo.

Na realidade nunca nos libertaremos legitimamente do fundamento arquetípico, a não ser que estejamos dispostos a pagar o preço de uma neurose, da mesma forma que não nos livraremos de nosso corpo e de seus órgãos sem cometer suicídio. Já que não podemos negar os arquétipos ou torná-los inócuos de algum modo, cada nova etapa conquistada na diferenciação cultural da consciência confronta-se com a tarefa de encontrar uma nova interpretação correspondente a essa etapa, a fim de conectar a vida do passado, ainda existente em nós com a vida do presente, se este ameaçar furtar-se àquele. Se esta conexão não ocorrer cria-se uma consciência desenraizada, que não se orienta pelo passado, uma consciência que sucumbe desamparada a todas as sugestões, tornando-se suscetível praticamente a toda epidemia psíquica.

Com a perda do passado, tornado "insignificante", desvalorizado, impossível de recuperar seu valor, também se perde o salvador, pois este é o próprio insignificante, ou dele surge. Ele aparece sempre de novo na "transformação da figura dos deuses" (ZIEGLER), como profeta ou primogênito de uma nova geração e se manifesta inesperadamente nos lugares mais improváveis (nascimento da pedra e da árvore, sulco de arado, água, etc.) e também sob uma forma ambígua (pequeno polegar, anão, criança, animal, etc).

Carl Gustav Jung

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